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sábado, 26 de setembro de 2009
Porque as prisões brasileiras falham
Porque as prisões brasileiras falham
Munido de estatísticas e fatos estarrecedores, o advogado criminalista e articulista da Folha Luís Francisco Carvalho Filho mostra no livro "A Prisão" como o sistema prisional brasileiro falha na recuperação e reintegração de cidadãos.
O livro alerta para o desinteresse político sobre o assunto e o custo humano que a prisão representa para a sociedade brasileira. O primeiro capítulo do livro, que integra a série "Folha Explica", pode ser lido abaixo.
Divulgação
Advogado criminalista mostra estatísticas e fatos estarrecedores
O problema não é apenas brasileiro, lembra Luís Francisco, que apresenta no livro relatos sobre a história da prisão humana no mundo. Nas prisões dos Estados Unidos há cerca de 2 milhões de delinquentes, dos quais expressivo percentual vive em condições muito ruins, sobretudo nas cadeias estaduais.
Leia abaixo o primeiro capítulo de "A Prisão"
Dois Mundos
A prisão priva o homem de elementos
imprescindíveis à sua existência,
como a luz, o ar e o movimento.
Descontrole
Em 18 de fevereiro de 2001, o Brasil seria surpreendido por uma super-rebelião de presos. Sob a regência da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), que se notabilizara pela prática de atos de violência e fugas sensacionais, 28 mil detentos de 29 unidades prisionais do estado de São Paulo, em 19 cidades, amotinaram-se ao mesmo tempo. A Secretaria de Assuntos Penitenciários só readquiriu o controle da situação 27 horas depois e contabilizou 16 mortos.
Ocorrência de tal magnitude não se explica apenas pelo atrevimento do chamado crime organizado ou pela posse de telefones celulares, contrabandeados para dentro dos presídios com a conivência do sistema de segurança. Um caldo de revolta e desespero anima os movimentos da massa prisioneira do país.
Dias depois do levante, um parlamentar ouviria ameaças de retaliação caso o governo estadual se recusasse a negociar uma lista de reivindicações, da qual apenas um item se relacionava diretamente com a organização: o cancelamento das transferências feitas para desarticular o PCC. Os outros itens da pauta diziam respeito ao tratamento que todos recebem: fim da tortura, punição de agentes penitenciários por abuso de poder e espancamentos, melhoria da assistência judiciária gratuita e fim das revistas vexatórias das visitas.1
Dois episódios nada explosivos, de impacto bastante reduzido, capazes de afetar apenas o cotidiano de seus protagonistas, também revelam o estado de nossas prisões.
Em 16 de outubro de 2001, Augusto Sátiro de Jesus, 45, funcionário de uma rede de restaurantes havia 18 meses, foi detido em flagrante delito com uma coxa e uma sobrecoxa de frango, com prazo de validade vencido, no interior de sua mochila. Sem dinheiro para comprar comida, segundo sua versão, correu o risco de passar pelo crivo da vigilância dos patrões com o produto do "crime", avaliado pela polícia em R$ 0,90. Preso por furto qualificado (por ter abusado da confiança do empregador), sem assistência de advogado, ele permaneceria 16 dias numa cela de 12 metros quadrados com outros 25 homens, num dos muitos distritos policiais da cidade de São Paulo.2
Cerca de um ano antes, duas jovens advogadas paulistanas foram procuradas por um homem negro, acompanhado da mulher e de uma criança de colo, em situação jurídica inusitada, que poderia fazer parte da narrativa de Lewis Carroll em Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Condenado à prisão, ele recebera autorização para passar o fim de semana com a família. Por motivo de doença, apresentara-se à portaria da penitenciária com atraso. Foi simplesmente impedido de entrar. O funcionário da recepção fechou arbitrariamente as portas da prisão para ele, deixando-o do lado de fora --"livre" e perplexo, ameaçado de ser considerado fugitivo e perder o prontuário de bom comportamento. As advogadas, acostumadas a formular pedidos de liberdade, viram-se na contingência de requerer sua prisão, o que, evidentemente, logo se deferiu. Dias depois, receberiam um telefonema de agradecimento, quando também souberam que o preso, como retaliação, fora punido com isolamento.
As prisões brasileiras são insalubres, corrompidas, superlotadas, esquecidas. A maioria de seus habitantes não exerce o direito de defesa. Milhares de condenados cumprem penas em locais impróprios.
O Relatório da caravana da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados por diversos presídios do país, divulgado em setembro de 2000, aponta um quadro "fora da lei", trágico e vergonhoso, que invariavelmente atinge gente pobre, jovem e semi-alfabetizada.
No Ceará, presos se alimentavam com as mãos, e a comida, "estragada", era distribuída em sacos plásticos --sacos plásticos que, em Pernambuco, serviam para que detentos isolados pudessem defecar.
No Rio de Janeiro, em Bangu I, penitenciária de segurança máxima, verificou-se que não havia oportunidade de trabalho e de estudo porque trabalho e estudo ameaçavam a segurança.
No Paraná, os deputados se defrontaram com um preso recolhido em cela de isolamento (utilizada para punição disciplinar) havia sete anos, período que passou sem ter recebido visitas nem tomado banho de sol.
No Rio Grande do Sul, na Penitenciária do Jacuí, com 1.241 detentos, apesar de progressos, havia a assistência jurídica de um único procurador do estado e, em dias de visita, o "desnudamento" dos familiares dos presos, com "flexões e arregaçamento da vagina e do ânus".
Há uma mistura estrategicamente inconcebível de pessoas perigosas e não-perigosas. Há tuberculosos, aidéticos e esquizofrênicos sem atendimento.3 O cheiro e o ar que dominam as carceragens do Brasil são indescritíveis, e não se imagina que nelas é possível viver.
Quem ler os trabalhos resultantes das incursões de Percival de Souza (nos anos 70) e Drauzio Varella (nos anos 90),4 cada um a seu modo, à Casa de Detenção de São Paulo, no Carandiru, o maior presídio do país, verá que, durante décadas, milhares e milhares de homens foram remetidos para um mundo assustador, onde nada é capaz de lembrar propósitos de reabilitação.
Os motins se espalham. Em 2 de janeiro de 2002, rebelião no presídio de segurança máxima Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia, deixaria um saldo de pelo menos 27 mortos, os corpos espalhados pelas celas, muitos deles mutilados, resultantes do confronto de grupos rivais. Os cadáveres eram retirados por trator tipo retroescavadeira, que os recolhia do interior do presídio e os jogava num caminhão, que os levaria para o IML. O presídio tinha capacidade para 360 homens e abrigava cerca de 900. Em dezembro de 2001, a arquidiocese local já alertara para a iminência de uma "carnificina".5
Curiosamente, o próprio diretor do presídio, afastado do cargo dois dias depois da mortandade, fora condenado em 2001 a cumprir pena de dois anos e um mês de prisão por prevaricação e falsidade, acusado de ter explorado o trabalho de presos na reforma de sua residência particular.6
Do lado de fora dos muros, os índices de criminalidade violenta aumentam, os sentimentos de impunidade e insegurança se generalizam. As leis e os magistrados tendem a ser cada vez mais severos. O sistema judiciário é profundamente desigual. A exclusão econômica aumenta ainda mais a freguesia das prisões.
O número de presos cresce em ritmo acelerado. O censo penitenciário de 1995 apontava a existência de 148.760 presos no Brasil: 95,4 para cada grupo de 100 mil habitantes (critério internacional para o cálculo da taxa de encarceramento nos diversos países). O censo de 1997 detectava a prisão de 170.602 homens e mulheres, com taxa de encarceramento de 108,6 e déficit de 96.010 vagas.
Em abril de 2001, já havia 223.220 presos no Brasil, o que representava 142,1 detentos para cada grupo de 100 mil habitantes. A maior concentração estava em São Paulo, com 94.737 presos e uma proporção sensivelmente mais alta: 277,7 presos para cada grupo de 100 mil habitantes.7
Em outubro de 2001, existia déficit de pelo menos 26 mil vagas no complexo formado pelas penitenciárias e pelas carceragens das delegacias de polícia de São Paulo. O poder público se esforça, mas lembra a fábula do homem que tenta evitar o vazamento da represa com o dedo. Como admitem as autoridades, só para dar conta do crescimento da população presa mensalmente (de 800 a mil réus), seria necessário construir um novo presídio a cada trinta dias.8 E presídios custam muito caro.
As cifras não contabilizam os infratores menores de 18 anos, que tecnicamente não estão presos, mas "internados", e não cumprem pena, mas recebem "medida socioeducativa". No primeiro semestre do ano 2000, foram aplicadas mais de 99 mil medidas socioeducativas contra adolescentes em São Paulo; entre elas, contavam-se 54.871 casos de liberdade assistida, 21.729 casos de prestação de serviço à comunidade e 17.088 internações compulsórias.9 São os presos de amanhã.
A imagem do país no exterior se deteriora: entidades internacionais de defesa dos direitos humanos têm sistematicamente condenado as terríveis condições de vida dos presídios brasileiros. O sistema é visto como um rastilho de pólvora e fator de incentivo à violência. Não só pela desumanidade medieval que patrocina, mas pela absoluta ausência de interesse político em relação ao que acontece em seu interior.
EXCLUSÃO E NEGÓCIO
Nossos números são aparentemente modestos se o parâmetro de comparação é o sistema prisional dos Estados Unidos da América, que, em 30 de junho do ano 2000, abrigava 1.931.859 presos.10
É o equivalente à população de Brasília ou à soma das populações inteiras de cidades prósperas do estado de São Paulo, como Campinas, São José dos Campos e Santos. São 702 detentos para cada grupo de 100 mil habitantes --a mais alta taxa de encarceramento do planeta. Se a base de crescimento for mantida, estima-se que em 31 de dezembro de 2005 haverá mais de 2,2 milhões de presos nos EUA.
Além da população encarcerada, uma quantidade assombrosa de homens e mulheres, mais de 4,5 milhões, estava sob a vigilância do sistema punitivo norte-americano (ameaçados de prisão no caso de não-cumprimento das exigências impostas pela Justiça), em regime de suspensão da pena privativa de liberdade (probation) ou em liberdade condicional (parole) em dezembro de 2000. A soma de pessoas presas ou vigiadas correspondia a 3,1% da população residente adulta dos EUA (uma em cada 32 pessoas nessa faixa etária).
O mais rico país do mundo não pratica em seus presídios a crueldade crua que invariavelmente se encontra nos cárceres do Terceiro Mundo, mas o gigantismo do sistema faz com que a violência sexual contra prisioneiros, por exemplo, torne-se motivo de grande preocupação.
Ao contrário de outros países, que ainda não se voltaram para o problema, como se a hipótese do "estupro"11 fosse inerente à perda da liberdade, há nos EUA uma saudável mobilização contra a violência sexual (rape), prática entranhada no sistema, inclusive como mecanismo de punição informal de presos. Por seu impacto psicológico devastador, a violência sexual é apontada como um dos fatores determinantes da reincidência criminal e como uma das principais causas de suicídio, que, por sua vez, é uma das principais causas de óbito entre encarcerados. Em outubro de 2001, uma organização não-governamental exclusivamente voltada para a questão (a Stop Prison Rape) estimava em cerca de 364 mil o número de atos de violência sexual praticados por ano nas prisões dos EUA. Atingem, sobretudo, jovens e presos não-violentos.12
Os números expõem, também, o caráter racista do sistema. Apenas cerca de 6% da população norte-americana é composta de homens negros e adultos, mas quase a metade dos presos são homens negros e adultos. A taxa de encarceramento de negros em 1994 era em média 7,66 vezes superior à taxa de encarceramento de brancos. Em Minnesota, havia 1.275 presos negros e 56 presos brancos por grupo de 100 mil habitantes dos respectivos universos populacionais. Em Nova York, 1.138 negros e 202 brancos. No Texas, 1.943 negros e 178 brancos (Stern, p. 50 e 119).
A quantidade crescente de presos ainda indica um cenário de exclusão política, sem paralelo em países democráticos. Segundo cálculo de 1998,13 cerca de 3,9 milhões de pessoas adultas estariam sem direito político de votar nos EUA em virtude dos efeitos colaterais da condenação. Além dos efetivamente encarcerados, diversos estados impedem o voto de condenados em regime de probation ou parole. Outros inviabilizam o direito de voto até de condenados que já cumpriram suas penas. O quadro atinge de forma marcante a minoria negra: cerca de 1,4 milhão de indivíduos (13% do total). Em dez estados, a proporção era de um em cada cinco negros sem direito de voto.
A sensação de insegurança e a queda dos índices de criminalidade têm estimulado o movimento encarcerador. Em 1980, eram 1.842.100 pessoas presas ou vigiadas (probation e parole); no final do ano 2000, eram 6.467.200.14 O custo anual do sistema ultrapassou US$ 40 bilhões. O número de presos é tão expressivo que interfere, decisivamente, nos cálculos das taxas de desemprego.
Medidas legislativas baseadas no princípio da "tolerância zero" (que pretende prevenir delitos mais graves com a punição de infrações mais leves), apoiadas pela maioria da população, indicam que a disposição dos governantes não é prender apenas os autores dos crimes violentos, e sim abortar carreiras criminosas no nascedouro, não se importando com o custo humano, financeiro e político disso.
Em alguns estados norte-americanos, a aplicação de leis conhecidas por three strikes you're out (expressão emprestada do beisebol, um dos esportes mais populares do país) pode resultar hoje na prisão perpétua, sem direito à liberdade condicional, de reincidentes em três delitos não-violentos.
Nas últimas duas décadas, os EUA endureceram o regime punitivo, modificaram suas prioridades orçamentárias e ampliaram a infra-estrutura carcerária, recorrendo, inclusive, à iniciativa privada para a construção e gestão de penitenciárias.
As prisões e os réus passaram a ser o núcleo de um poderoso interesse industrial, um grande negócio. Na esteira da globalização, empresas dedicadas ao cárcere movimentam milhões de dólares anualmente, prometendo aliviar as despesas estatais e resolver o problema da superlotação. Segundo Minhoto, já têm interesses econômicos espalhados por países como França, Canadá, Inglaterra, Alemanha, Austrália e Porto Rico. Para elas, pelo menos, o crime compensa.
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Emidio Campos
Consultor de Segurança
http://segurancadecondominio.blogspot.com
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